Em Volta dos Objetos 02 x #3 Conversas de Barro
07/12/2022
In the second conversation Em Volta dos Objetos [Around the Objects] we got together with ADOC and did a partnership with their initiative Conversas de Barro [Clay Conversations]. There we got to learn more about the designers experience during their Tasco em Viana do Alentejo residency, in Feliciano Agostinho’s pottery workshop, during the summer. (Article in Portuguese)
Aconteceu no dia 1 de outubro às 15h na VICARA, em Caldas da Rainha. Fruto de uma colaboração entre a VICARA e a Associação DOC, a conversa propôs-se a refletir sobre a prática autoral de cerâmica a partir da experiência que os designers João Xará, Álvaro Nogueira, e Mariana Filipe tiveram na oficina de Feliciano Agostinho, durante a residência Novas Formas em Olaria, em Viana do Alentejo. A acompanhá-los estiveram Paulo Sellmayer, diretor criativo da VICARA, Miguel Neto, ceramista e formador no CENCAL, e a designer Eneida Lombe Tavares, que fez a mediação da conversa.
Álvaro é o primeiro a comentar sobre o impacto que a sua experiência em cerâmica teve naquele contexto, dizendo que tanto facilitou como complicou a relação com Feliciano. Principalmente porque, como explica o designer, a sua familiaridade com a roda dá-lhe já perspetiva sobre as formas que procura, e sabe já como as alcançar. Na residência, era Feliciano que estava na roda e, por isso, Álvaro incentivou-o a seguir a visão que tinha para as peças, empurrando-o a procurar alguma retidão nas linhas. Confessa, no entanto, que o resultado final ‘tem a mão do Feliciano’, o que não as diminui pois acredita ser resultado de um trabalho de ambos, sublinhando que, se procurasse exatidão, seriam feitas recorrendo a um molde. Na verdade, e como Eneida menciona, trata-se de um fruto da relação que foi estabelecida com o oleiro, e coloca a hipótese de que Feliciano tivesse também coisas para oferecer ao Álvaro e não só ao contrário. Mariana Filipe também imaginou que o background dela em cerâmica pudesse atrapalhar o processo. Pela rapidez com que o oleiro trabalha – não dando muito espaço para que sejam feitos acabamentos e correções, pelo menos ao detalhe que costuma ir – Mariana viu-se obrigada a ajustar-se ao modo de trabalho do Feliciano, compreendendo que as peças seriam necessariamente diferentes das que faz na sua oficina. João, ao contrário dos outros designers, não tem experiência com olaria, e talvez por isso, diz, estivesse mais livre àquilo que as mãos de Feliciano traziam ao desenvolvimento da peça. O rebordo de Viana, que se vê nos alguidares tradicionais da região, foi o ponto de partida para a coleção Aba, mas os produtos finais acabam por se distanciar do desenho original porque são inevitavelmente fruto do diálogo entre ele e o oleiro. Mais tarde, uma das pessoas da audiência refere exatamente a diferença entre a leitura do desenho técnico e a leitura de um objeto já feito: a comunicação com o oleiro tem de ser feita através de um objeto com volume - um desenho bidimensional não funcionaria. Tratam-se de códigos diferentes, que chocam e não dialogam facilmente. Será, como Miguel explica, a consequência da inexistência de uma escola – ali o ofício nasce dentro do seio familiar. Mariana chega até a referir que ‘o Feliciano nem pesava o barro’.
A determinada altura, Miguel lembra que, há sempre uma vontade do oleiro de introduzir a sua própria autoria no projeto e que é possível ver isso nas peças que resultaram da residência. Coloca, no entanto, a hipótese de que, em Caldas da Rainha, houvesse talvez mais rigor no processo de tradução do desenho para o objeto, pois existe uma preocupação estética bastante grande, dando até o exemplo da atenção ao detalhe no trabalho de Armindo Reis. Pelo contrário, nas peças de Viana do Alentejo, compreende-se a autoria de Feliciano e talvez até o peso de uma preocupação produtivista. Mais tarde, Álvaro conta que Feliciano disse que sentia que os turistas iam à procura de coisas ‘mal feitas’, ao que Miguel responde que isso nada mais é do que uma linguagem, porque a olaria não tem de necessariamente ser tosca, ‘é uma associação deturpada’.
Miguel utiliza duas palavras para descrever as peças que resultaram da residência: ‘uso popular’, lembrando que o contexto da olaria é um contexto popular, e que era considerada pela sua utilidade. Termina, contudo, dizendo que apesar da olaria tradicional ter um léxico de formas muito reduzido, são este tipo de iniciativas que vão introduzindo diversidade nesse léxico, sublinhando a importância deste tipo de trabalho. Aliás, Mariana conta que recebeu uma mensagem de um oleiro de Mafra a elogiar a iniciativa, mas a questionar sobre as novas gerações não estarem focadas nas formas da olaria tradicional. Álvaro relembra que se há formas que estão a desaparecer é porque há um motivo para isso, e Paula Lomelino, investigadora na área de intersecção entre design e artesanato que assistia à conversa, menciona que não se trata só de uma linguagem tradicional que tem vindo a desaparecer, mas sim formas de estar e viver que mudaram, e que tornam obsoletos certo tipo de objetos. Dá os exemplos da cestaria e das bilhas, que já não fazem sentido no estilo de vida contemporâneo que tem corredores de supermercados e garrafas de água de plástico. O objeto em si está intimamente ligado com o modo de vida, e sugere que pode fazer sentido uma atualização formal, isto é, mantendo o saber fazer e a técnica, mas introduzindo novas linguagens.
Paulo explica que as peças finais sofreram alterações relativamente às primeiras que foram feitas durante a residência, de modo a poderem ser inseridas nas caixas, relembrando que o objetivo é introduzi-las na coleção da Tasco para serem vendidas. O critério de seleção, explica, foi começar com as peças de mais fácil produção, mas ficou a promessa de um segundo lançamento, com algumas das peças mais complexas. De facto, esta é uma preocupação que importa para a sustentabilidade do projeto. Paula Lomelino acrescenta que o fetichismo do objeto obsoleto é um mercado insustentável para os artesãos, reforçando a importância do trabalho da VICARA em Viana do Alentejo, pois permite que surjam encomendas para a olaria. Muitos outros projetos a nível nacional começam por procurar criar uma relação entre design e artesanato, mas muitos deles ficam pelo caminho pois são poucos os casos onde há uma continuidade após o momento de criação – ‘tem de haver um foco na componente comercial que também dá continuidade ao trabalho de ambos os lados’, explica Paulo.
Na parte final deste segundo momento das conversas Em Volta dos Objetos, Bruno Reis Santos (aka Mantraste), um dos ilustradores que participou na residência em Viana do Alentejo que também assistia à conversa, conta como Feliciano respondeu ao seu pedido de lhe ensinar a trabalhar na roda: o oleiro fez uma peça muito simples, passou-lhe o avental e disse ‘agora faz tu’. Feliciano, voltando sem nunca o ter visto a trabalhar na roda, acrescentou apenas que ele tinha de ‘melhorar a postura das costas, pôr mais água, e fazer mil exemplares’. Um exemplo do modo de ensino e de trabalho de que Feliciano é fruto.